terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Culpa

Imagem Flickr

Admiti que era eu a culpada. A culpada de tudo o que estava a acontecer nos últimos tempos. Não me custa dizer que sou eu a culpada, dói mais sentir o peso dessa culpa, passado tanto tempo de me acostumar a ela, como nos habituamos a uma dor crónica que já não se dissocia do próprio corpo. Cresci numa casa com ela sempre por perto, vivi com ela e não mais a larguei.

Esperei por ti no sítio combinado, dentro do carro naquele dia chuvoso e triste. As minhas mãos estavam geladas. Tinha chovido, ia chovendo e pingando ao ritmo lá de cima. Caíam uns pingos de água pesados sobre o tejadilho, que me incomodavam, pelo eco que reflectiam cá dentro... esses pingos, que bem podiam ser lágrimas a escorregarem-me pela face abaixo, interrompiam o silêncio em que estava mergulhado o meu pensamento distante. Queria distanciar-me e fugir desta culpa, que rejeito e vou buscar, deste peso esmagador que me roubava a serenidade. Sentia-me diariamente desprovida de tudo e cheia de nada, vítima da culpa auto-imposta que crescia em torno de mim, tal teia emaranhada de receios.

Quando pensava na razão de tal peso não conseguia vislumbrar argumentos lógicos, mas o que é certo é que o sentia, por não ter tempo suficiente, por gorar expectativas, por procrastinar, por não aproveitar, por não sentir o que queria, por desiludir, por não conseguir dar mais...

E sentir tudo isto era tão avassalador que não me permitia avançar, paralisava-me e jogava-me a um canto como folha de papel amachucado.

Finalmente chegaste. O teu sorriso de menino e esse brilho no olhar deram-me esperança... em acreditar que não tinha de me sentir assim. Senti-me protegida e guardei esse momento para sempre.

5 comentários:

Tinta Permanente disse...

Li não sei onde que o sentimento de culpa é um sentimento ocidental que herdamos sobretudo da religião cristã (tal como a purga e a punição). Há culturas que não sabem o que isso é.
Muito de nós, sem sermos religiosos, praticamos a culpa, como uma tradição.
Os bons momentos são aqueles que a culpa desaparece, parece que se evapora. :) Beijinho

NI disse...

Concordo com o que escreveu a Tinta. E pelo final do teu post dá ideia que apenas tu assumiste esse pensamento.

Beijo

Jasmim disse...

Tinta, sim, creio que a culpa originalmente está bastante presente na tradição judaico-cristã, mas penso ser um sentimento quase transversal, no "mundo ocidental", independentemente das crenças religiosas.
Ni, acho que muitas vezes a culpa é um dedo apontado a nós, mas pode ser o nosso próprio dedo... Beijinhos e obrigada

José J.C. Serra disse...

gosto, em especial, do som martelante dos pingos da chuva no tejadiho do carro. que metáfora fantástica para um sentimento tão complexo e doloroso como a culpa. outra metáfora de que gosto muito para o sentimento de culpa é, para quem viu o filme «Sonhos» de Akira Kurosawa, o cão rafeiro que rosna e ladra contra um soldado regressado da guerra e único sobrevivente do seu batalhão.
jasmim, gostei da resolução final do texto: «senti-me protegida», e isso fez toda a diferença.
parabéns pelo texto e pela retoma de actividade criativa.

Francisco disse...

Há a culpa injusta dos que nada fizeram e se remoem em torno do que poderiam ter evitado. Há, também, uma culpa saudável de termos sido aquilo que não gostámos de ser. Ainda que tenha sido por breves instantes. Que pelo menos nos sirva para almejar qualquer coisa que sonhámos para nós. Para não sermos eternos procrastinados. (Terei usado bem a palavra que acabei de aprender?)